Sunday, May 06, 2007

MULHERES DE ATENAS- A CIDADANIA EXCLUDENTE NA ANTIGUIDADE E NOS NOSSOS DIAS - UM PARALELO

Mulheres de Atenas – a cidadania excludente na antiguidade e nos nossos dias – um paralelo. Ivone Bengochea
A canção de Chico Buarque e Augusto Boal, mulheres de Atenas, que acabamos de ouvir, é em toda sua extensão o desdobramento de inúmeras metáforas em que os sujeitos são as mulheres. Aliando argumentos permeados de ironia já que são argumentos femininos no coletivo, com verbos conjugados na terceira pessoa do plural. Ajoelham-se, pedem, imploram, despem-se, temem, sofrem para seus maridos e secam, isto é, morrem.
Não há sinais de vida própria, autônoma porque elas, as mulheres de Atenas, não têm defeitos ou qualidades, nem gosto ou vontade, nem sonhos e sim presságios e, ainda sofrem as mais duras penas que os autores buscam rimar com cadenas. O termo cadenas tem origem no espanholismo que significa corrente, cadeia. Ex. encadenados (acorrentados). No dicionário do Aurélio consta como um meio utilizado para tirar o chifre dos touros, sem perigo, o laço que o prende. Significando, portanto, aprisionamento. Ironicamente, é uma advertência às mulheres contemporâneas que ainda vivem acorrentadas sob o jugo do modelo da sociedade patriarcal, com costumes praticados em Atenas, da antiguidade grega, onde prevalecem apenas os argumentos masculinos. Por exemplo, na Odisséia, o filho de Penélope a repreende diante de seus pretendentes.
(...) recolhe-te à tua câmara e trata dos lavores que te são próprios, do tear e da \ roca....
A pujante Atenas do século VI a C. é o berço da democracia, a origem do cidadão como um ser da cidade e vínculo tecido pela mesma lei (nomos). As leis são discutidas nas assembléias (eklesia) que se realizam na praça pública (agora). Ali, o valor supremo é a palavra, a argumentação, o debate de idéias. Uma democracia exemplar se não fosse o restrito número de participantes.
Em toda estrutura da sociedade ateniense estava implícita a dicotomia cidadão e não-cidadão. A cidadania, para os gregos, era um bem inestimável, a plena realização do homem se fazia na sua participação integral e política da pólis. Não participar das atividades da cidade significava estar alijado da esfera pública e privar-se da igualdade e dos direitos.
Quem é destituído da cidadania, em Atenas, está necessariamente na esfera privada, no espaço da sujeição, vinculado às atividades de sobrevivências – o lugar da mulher, do escravo e os filhos, sem direitos, sob o domínio despótico do chefe de família. As mulheres certamente estão na esfera privada, no interior da casa (oikos). Por ironia, quem cuida da casa são as elas.
Uma boa mulher conserva e poupa o adquirido pelo marido ( econômico III, 2)
Oikos e nomos vão dar origem à palavra economia que trata da riqueza. Oikos que se traduz por casa também tem o sentido dos bens do senhor dentro ou fora da polis. Os excluídos são sempre seres incompletos na justificação dos teóricos:

A inferioridade da mulher e da sua posição pode ser atestada pela Política de Aristóteles que a justificava em virtude da não plenitude na mulher da parte racional da alma, o logos.
Jean Pierre Vernant, especialista em antiguidade observa: mesmo que o que implicava o sistema da pólis era primeiramente uma fantástica preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder. Palavra que não era mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação. Calar a mulher significava, portanto, o mesmo que excluí-la da cidadania.
Partindo da premissa que a literatura e a história são narrativas da memória, ambas têm em comum o estatuto da arte da palavra, é oportuno recorrer a Gerald de Messandie na obra ficcional “Sócrates e Xantipa, um Crime em Atenas”. Há comprovações históricas que Xantipa era a esposa de Sócrates, o primeiro grande filósofo ateniense. Porém, são raríssimas as referências documentais sobre ela. Xenofonte, historiador grego, discípulo de Sócrates, a descreve com a megera, a ranzinza, a insuportável esposa do filósofo. Entretanto, Messandie, valendo-se dos recursos literários dá voz e vida inteligível a Xantipa, uma jovem pobre, que é destinada em casamento a Sócrates.
Xantipa ansiava pelos braços de um homem, um verdadeiro, eles teriam contido esse caos dos quatro elementos, turbilhantes nas jovens solitárias: o fogo da imaginação, o vento do delírio, a água dos humores, a terra da carne. Um homem que fosse a grande urna na qual ela pudesse encerrar para sempre a violência do incriado. Até então, ela só conhecera o que era possível para as jovens de sua condição. Emoções breves e decepcionantes, que para ela eram simulacros do desejo: ainda que fosse atraente para as mulheres. Xantipa não era lésbica. Pobre e sem atrativos estava a ponto de permanecer infecunda, quando enfim foi pedida em casamento. E isso aconteceu já na idade avançada de vinte e quatro anos.
Sócrates foi apresentado a Xantipa aos 31 anos, aproximadamente a idade em todos casavam. Dos quinze aos trinta, eles viviam nos bordéis atrás de moços ou de mocas, ou por vezes de ambos. Depois chegava a hora de fazer filhos, a fim de dar soldados à cidade ou descendentes a seus ancestrais.
Sócrates é sábio. Xantipa é a ranzinza e um ser inconcluso porque lhe falta a argumentação, a palavra. Sócrates conhece e usufrui todos os prazeres, as carícias plenas. É venerado e disputado pelos seus discípulos, inclusive tem um affair pelo belo Alcibíades, um jovem de caráter duvidoso, seu discípulo e partícipes dos banquetes. O método socrático é a mauetica, o parto das idéias, e os argumentos são discutidos até a exaustão com os homens livres.Na cultura androcêntrica de Atenas era socialmente aceita a pederastia, o amor entre um homem mais velho e um rapaz. Sócrates vai para a praça, para o banquete. Xantipa fica no oikos, gerando e cuidando os filhos de Atenas, sem os prazeres, sem as carícias plenas e os desejos sublimados de acordo com o modelo feminino vigente. As mulheres respeitáveis ficavam segregadas ao aposento da casa (o gineceu).
Uma mulher respeitável devia permanecer dentro de casa. As estradas são para elas desonrosas (Menandro, fragmento 46)
E por falar em palavra, em economia e em direitos, estradas perigosas, na polis moderna que habitamos, é importante ressaltar que são válidos quase sempre os argumentos masculinos, econômicos, financeiros em detrimentos aos direitos dos demais. Permanece, apesar dos tempos, na sociedade brasileira o modelo do colonizador europeu, ou seja, do homem branco, rico e católico, aos demais – índios, negros, pobres, trabalhadores restam a cidadania excludente.
Não é de se estranhar que a idéia de direitos humanos no bombardeio do discurso midiático atual apresenta-se como uma idéia incomoda, eivada de preconceitos, de subterfúgios que mascaram a falsa igualdade entre os desiguais tais como: bandido bom é bandido morto, direitos humanos são direitos dos assassinos, o correto é primeiro atirar e depois perguntar, pena de morte, fim da menoridade penal e a constante criminalizacao dos movimentos sociais.
Sabe-se, que as balas perdidas, a pontaria das metralhadoras policiais estão determinadas pelo destino que os gregos chamavam de moira para aqueles que, de alguma forma, já cumprem pena de vida. Combate-se a violência com mais violência, em especial para os já marcados antes de nascer como os que estão no ventre das meninas estupradas. Uma cena cotidiana dantesca e impune que mofa os nossos olhos. Para os que habitam as vilas periféricas, os barracos, quanto mais escura for a cor da sua pele, menos válidos serão os seus argumentos. Exemplo recente da prevalência dos argumentos econômicos é o despejo de 38 pacíficas famílias, na sexta-feira, com um aparato policial nunca visto para desalojá-las em um prédio abandonado no centro da cidade. Famílias compostas por mulheres, crianças e homens pobres que ousaram reivindicar o direito a uma habitação digna e, pior, com uma vista para o Guaíba. Os que outrora, como nós, ainda vislumbravam o rio de sua janela estão ofuscados pelos suntuosos prédios públicos federais e os espigões que a especulação imobiliária reivindica e o poder público permite. Nas ruas, nas praças do nosso porto já não muito alegre, são perceptíveis os sinais de desrespeitos aos mais elementares dos direitos humanos – a vida, a dignidade, a integridade. Multidões de desvalidos vagando nas ruas sem o mínimo amparo das ditas políticas públicas. Na nossa polis, no nosso estado e no nosso país, os argumentos financeiros agem em detrimento de seus habitantes mais desfavorecidos e, portanto, destituídos da palavra e da cidadania.
Mas, retomando às mulheres contemporâneas, não poderia deixar de fazer referência ao filme Volver, do Almodóvar, ainda em cartaz nos nossos cinemas. Volver é um filme dirigido por um homem e pleno de argumentos femininos. Mulheres que refletem incessantemente o seu cotidiano, suas tradições. Mulheres que ousam romper as barreiras e dizem a sua palavra no entremeio da poderosa tradição secular espanhola.
A atriz Penélope Cruz, linda na pele de Raimunda é uma mulher dos anos 2000, trabalha, controla as despesas, inclusive os gastos do celular da filha adolescente. Nega despir-se para o marido bêbado e agressivo. Um marido aos pedaços com olhares lascivos para sua menina. Raimunda carrega dentro de si os traumas da violência familiar e obstinadamente luta para estancá-la para sempre Ela tem defeitos e qualidades, tem sonhos o que a diferencia das mulheres de Atenas e luta contra o medo. É preciso dar um futuro para sua filha, qualquer perspectiva de futuro para as novas gerações não pode estar assentada na mentira, na hipocrisia, no faz de conta que nada aconteceu. Tarefa quase insuportável para qualquer ser humano, muito mais árduo para uma mulher. Mas, Raimunda persiste, luta e consegue. Um filme de rara beleza com a elegância das metáforas para denunciar a e a crueldade e a sutileza da violência doméstica. Volver não com a cara marchita (enrugada) como no tango de Gardel. A cara da atriz é perfeita, ela age enquanto é tempo, corajosamente. Num exercício articulado, fazendo inveja a qualquer exercício de mauetica socrática.
E, agora, para não transparecer a amargura diante dos acontecimentos. Quero homenagear um homem muito especial, o jornalista João Aveline, que nos deixou na primavera, de 2005, jovem aos quase 90 anos de vida. Uma vida dedicada às causas libertárias, e, especialmente as mulheres. Aveline morreu digitando um livro sobre nós, sobre as lutas, as nossas vicissitudes. Ele sempre declarava que entre os excluídos, a exclusão da mulher era muito mais dramática. Aveline é ícone das lutas libertárias, em Porto Alegre.
Por fim,agradecendo a paciência dos presentes, colocando um pouco de alegria na mesa, e nas comemorações da semana de Porto Alegre, digo que todas nós mulheres temos um quê de bailarina, quando o palco se ilumina, ficamos roxas para dançar, com direito ao Almodóvar no palco e todos os homens libertários do mundo. Quem sabe? O Chico Buarque está em turnê na cidade