Saturday, December 12, 2009

Meu Nome é Ninguém (sobre o Canto IX da Odisséia)

Meu nome é ninguém
(sobre o Canto IX da Odisséia)


Polifemo come gente: ele é canibal, antropófago – quase diríamos homófago, porque não está longe de ser humano e, assim sendo, estaria comendo seus iguais ou quase-iguais. A bestialidade faz dele um imbecil, incapaz de distinguir nome e pronome, o substantivo e sua representação. Tudo, para ele, é substância, até e sobretudo a palavra ninguém. Ele acredita que a linguagem refere substâncias; mas o que o pronome introduz são posições: eu, tu, ele não são coisas, substâncias nem substantivos, mas posições, que se trocam, que intercambiam seus lugares. (Lembrem a dificuldade de ensinar a uma criança que o você dela é meu eu, e vice-versa). Aliás, mesmo que a terceira pessoa fique estável em seu lugar, durante uma conversa, constituindo o referente mais ou menos comum dos interlocutores, aquelas que tomam parte no diálogo – a primeira e a segunda – oscilam o tempo todo, trocam continuamente, se não suas identidades, pelo menos suas posições, seus lugares, sua geografia.

Ora, Polifemo é incapaz de trocar, de trocar-se. Por isso, ele é derrotado e enganado. É por ser presa de uma ontologia sumária, de uma estabilidade de posições, de uma visão superficial da linguagem, que ele se mostra imbecil, mais que isso, inapropriado para as relações humanas. Sua boca não se define como o ponto de onde saem palavras, mas como o lugar dos dentes. Ela não dá nem recebe o verbo – dá apenas morte e recebe, somente, comida. Ele torna elementar, tosca a relação com os outros, em quem vê só refeições, nunca aliados ou conhecidos. (E isso, diremos adiante, o matará – porque ele não conseguirá o socorro de seus iguais, os demais ciclopes). Notemos também que, assim como confunde ninguém com o nome de uma pessoa, também não consegue captar o que é disfarce. Não imagina, nem mesmo suspeita, que um homem se disfarce em carneiro: quando Odisseu e os seus fogem, enganam-no, porque Polifemo procura o homem, não o homem sob o carneiro, não o homem/carneiro. Nada, para ele, vai além da superfície, da aparência.

Tudo isso constrói sua derrota. Aliás, sua derrota não está tanto no momento em que os gregos o cegam; esse é um ato físico, daqueles que ele próprio poderia cometer; em matéria de força bruta, Polifemo não tem rival. Mas não, o momento preciso em que sua derrota se produz é quando ele diz aos demais ciclopes que "ninguém" o atacou. Recordemos que, antes disso, ele já sofreu dois golpes, o primeiro ao o cegarem, o segundo ao fugirem de sua caverna os homens de Ulisses agarrados aos carneiros. Mas o momento decisivo, aquele que encerra sua derrota, é quando se dirige a seus iguais, para lhes pedir socorro. Ele o pede mal. Seus pares sabem que "ninguém" não é nome próprio, porém pronome; só ele o ignora; e, por desconhecer em que consiste um pronome, ele acaba não podendo se valer do socorro alheio.

Deve ser essa a primeira ocorrência literária desse fenômeno raríssimo na vida real, que é alguém morrer por ser ruim de gramática. É a substituição do nome pelo pronome, é a capacidade de sair do mundo das substâncias, do peso ontológico irrestrito, da solidez das coisas, para ingressar no mundo mais variado dos pronomes, das representações, mas sobretudo das representações que trocam de lugar, que permite a ajuda recíproca. Só há sociedade, só há socialidade, só há sociabilidade quando o pronome se faz ouvir.

O isolamento e a conseqüente derrota de Polifemo se devem, afirmei, a ele ignorar o que é um pronome – ou melhor, uma vez que não estou discutindo o rigor gramatical mas sim o significado filosófico do que há no pronome, o que é a troca de posições. Polifemo não é capaz de trocar com os outros. Confinado em si mesmo – em sua comida – não consegue enfrentar um adversário inteligente. A antropóloga Hélène Clastres comenta, em seu livro A Terra sem Mal, que entre várias tribos sul-americanas aquele que não dá aos outros a comida que caçou vira animal; mais ainda, bestializa-se quem come, no mato, a comida caçada. E isso porque o correto é levar a caça para a aldeia, distribuí-la aos outros e, por isso mesmo, nem sequer tocar nela, não a comer. Quem come o que caçou, ou quem come escondido, é porque não quer repartir, e por isso vira bicho. Aqui a bestialização segue rumo parecido, embora não exatamente na mesma causalidade, mas numa certa sincronia: o bicho não consegue cooperação dos seus pares. O bicho come gente e não dá essa comida aos outros. O bicho é o índio que se desumanizou, é Polifemo que nem se humanizou.

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Um excurso, movido pela curiosidade: terá Thomas Hobbes sido marcado por essa passagem de Homero? É possível. Em 1673 ele publicou uma tradução parcial da Odisséia, e o que chama a atenção é que essa parte comece, justamente, por nosso Canto IX (seguindo até o XII). Dois anos depois, ele editou sua versão completa desse livro e da Ilíada. São obras tardias, posteriores à sua filosofia política, cuja última versão importante, o Leviatã, ele publicara em 1651; são obras de idade avançada, porque em 1673 Hobbes já tem oitenta e cinco anos; mas é óbvio que um homem de sua formação humanística teria conhecido, bem cedo, Homero. Isso ocorreu em sua fase pré-euclidiana e pré-galilaica, ou seja, antes da descoberta, aos quarenta anos de idade, dos Elementos de Geometria, e da freqüentação, no continente, dos grandes cientistas de seu tempo – fatores que mudaram, por completo, seu modo de ver o mundo. E ao mudar do humanismo para a geometria ele relegará a segundo plano os clássicos, em especial Aristóteles, chegando, numa passagem de particular bom humor (o cap. XXI do Leviatã), a dizer que o aprendizado do grego e do latim derramou muitíssimo sangue no Ocidente, pois nessas línguas se lia tanto Cícero quanto Aristóteles, ou sejam, os defensores do Estado popular e inimigos do monárquico. Homero, obviamente, ele não teria como culpar por isso.

O ponto, porém, que permite a aproximação de Hobbes ao Canto IX é uma passagem do começo do cap. XIII do Leviatã. Trata-se do capítulo mais importante de toda a obra hobbesiana, em que ele fundamenta a tese de que, não houvesse Estado, a natureza humana nos levaria à guerra de todos contra todos. No primeiro parágrafo, o filósofo afirma que somos tão iguais uns aos outros, em força física, que mesmo o mais forte pode ser derrotado pelo mais fraco (ou seja, não há uma diferença tão sólida de força, entre os homens, que fundamente o direito de um a mandar e o dever de outros a obedecer: a diferença de força entre nós é, sempre, reversível). Mas o que capacita o mais fraco a vencer o mais forte?

"... quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo".

Os dois modos pelos quais o mais fraco supera seu déficit de força, para igualar e vencer o forte, são exatamente os de que se vale Odisseu para derrotar Polifemo: sua astúcia ("secret machination") e a aliança com os companheiros ("confederacy with others, that are in the same danger with himselfe"). A força bruta é derrotada pela esperteza, sob suas duas formas: a astúcia, que pode ser individual, e a união com outros, que multiplica as forças dos fracos. E, como Odisseu ou Ulisses sempre foi tido pelo mais astuto dos homens – o que, aliás, até de certa forma o desmerecia, retirando-o da plena visibilidade devida a heróis como Aquiles, para depositá-lo no lugar retraído, acanhado, escondido do indivíduo matreiro, aquele que em vez de se expor à luz do dia se esconde no escuro ventre de um cavalo de pau – não é preciso grande esforço para remeter essa menção do Leviatã ao chefe grego, e em especial a seu bem sucedido enfrentamento com Polifemo.

É portanto mais que provável que Hobbes tivesse em mente, ou pelo menos em seu inconsciente, o Canto IX da Odisséia quando escreveu a abertura de sua passagem mais impressionante, a descrição do estado de natureza – ou condição natural da humanidade – no Leviatã. A importância que atribuía a esse canto – a ponto de começar por ele, duas décadas depois do Leviatã, que é de 1651, sua tradução de Homero – e o fato de que, das viagens de Odisseu, o episódio com Polifemo seja o que melhor faça pensar no estado de natureza, parecem ir além da mera coincidência. Mesmo que não tenha havido um uso consciente do Canto IX, com certeza o horror antigo figurava entre os pesadelos de nosso filósofo moderno.

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Mas a imbecilidade de Polifemo parece tão evidente, tão óbvia, que é bom tomar cuidado a respeito. Hoje, quem lê a Odisséia é porque lê clássicos, e por isso tem provavelmente a tendência, que caracteriza os intelectuais, de dar nota; trata-se quase de um vício de trabalho que adquirimos lendo, escrevendo, lecionando, do mesmo jeito que outras pessoas assumem tiques de suas profissões, porque manejam uma máquina, porque abrem portas, porque carimbam selos; ora, é tão flagrante a diferença de qualidade entre Ulisses e Polifemo que os viciados em notas tendem a dar vitória de dez a zero ao primeiro: o outro é muito burro, – tão burro que sua derrota parece inscrita na sua burrice. E no entanto Ulisses e os seus sobrevivem apenas por um fio. Com toda a sua inteligência, quase se perdem.

Todo o canto IX é marcado pelo mais intenso terror. O confronto a que assistimos é muito pior do que aquele, na Ilíada, entre gregos e troianos. Ali estava em jogo uma vitória ou derrota, mas não a morte em condições tão horríveis; a morte, que ali ocorresse, seria gloriosa, como a de Aquiles; aqui, será infame. Diante de Tróia, a morte seria tão honrosa que podia, até, ser almejada: Aquiles escolhera, ante a alternativa de uma vida longa e obscura, uma vida breve, porém de memória imorredoura. Na caverna de Polifemo, contudo, a morte não trará nada de positivo. Os homens comandados por Odisseu conseguirão, afinal, marcar sua própria humanidade, contra a bestialidade de Polifemo, pela astúcia, e por que astúcia: extrema. Mas por outro lado, em que pese a superioridade deles e a burrice de Polifemo, é por pouco que vencem a parada. Talvez não haja muito a distinguir entre os dois momentos da astúcia de Odisseu, um primeiro, na Ilíada, que o faz esconder os soldados gregos dentro do cavalo de Tróia, um segundo, na Odisséia, que o leva a disfarçar-se e a seus homens debaixo dos carneiros. A diferença, porém, a enorme diferença está entre os inimigos: num caso, estes compartilham com os gregos até mesmo divindades, até mesmo a cultura, até mesmo a humanidade; no outro, o inimigo contesta o humano, pela antropofagia. Contesta-o quase de dentro, porque o ciclope parece demais um homem, compartilha com o homem – isto é, com o grego – muita coisa, mas é justamente por isso que constitui sua caricatura, seu terror interno, sua contradição íntima.

Negar o humano não é matar o homem. É matá-lo com ignomínia. Morrer diante das muralhas de Tróia é glorioso. Sim, não ter os ritos funerários é detestável, como ocorre na Ilíada e de novo, séculos depois, na Antígona, mas de algum modo eles acabam sendo prestados à memória do morto. Morrer, porém, para servir de repasto a um ser odioso, eis o que não tem glória alguma. Se o sentido que há para o aristocrata em escolher a morte consiste em eternizar o nome, em conquistar o renome, esse se dissipa, contudo, no caso de uma morte tão vil que destrua a unidade do corpo em bocados, e o seu destino em alimento.

Detenhamo-nos em dois pontos: primeiro, a fragilidade da inteligência diante da força bruta – segundo, a infâmia que seria a morte em mãos do gigante. Dois valores básicos, fortíssimos para o homem, aqui aparecem em toda a sua fraqueza, o da inteligência e o da fama. Neles se reúne a humanidade. Ela se separa da animalidade porque, em primeiro lugar, substitui, ao menos em parte, a força física pelo pensamento, e, em segundo, porque preza uma certa beleza da ação, da conduta, que vale ao agente o respeito dos seus semelhantes: é isso a fama. A reputação, a glória, a honra atravessarão os tempos como matizes, pouco distintos entre si, da imagem pública que se constitui do valor de cada qual – e dessa maneira tecerão uma delicada trama, que é a das relações sociais.

Só há elo social porque existe uma estética da conduta humana, que a distingue do mero uso da força bruta. Essa convicção de um belo agir é, porém, posta em risco por Polifemo. O episódio do Canto IX é precisamente o cerne dessa ameaça ao humano, ameaça essa, contudo, que de certa forma percorre a Odisséia e a diferencia da Ilíada. No primeiro poema, no confronto entre gregos e troianos, é possível aos dois lados se cobrirem de glória. Haverá momentos mais duros, mas se quisermos fazer um balanço, desses que economistas fazem, de quanta glória havia no mundo ao começar e ao terminar o poema, ver-se-á que o final é superavitário em face do início. Guerras e combates foram produtivos em termos de glória.

É isso o que ao longo da história humana servirá como uma das grandes justificativas para a arte belicosa. Vale para a Idade Média européia, mas onde fica mais visível é nas escandalosas – para nós, não para seus participantes – Guerras Floridas entre os astecas e seus vizinhos. O império asteca, enquanto estendia seus tentáculos por boa parte do que hoje é o México, deixou subsistirem quase em seu centro alguns Estados independentes, com os quais guerreava com o principal intuito de adquirirem, uns e outros, prisioneiros que pudessem ser sacrificados aos deuses. Se a vitória era prezada, o que certamente fazia cada um lutar com denodo – e ostentar adornos que distinguiam os heróis que haviam apresado, em batalhas anteriores, um, dois, cinco inimigos talvez –, por outro lado a morte mais valorizada, na verdade quase que a única a ser valorizada, além do sacrifício, era a havida no campo de batalha.

Por isso mesmo, na verdade a batalha consistia numa série de combates quase individuais, não se tentando salvar o companheiro que o inimigo apreendera. O que aqui nos interessa é que tal espécie de guerra era vantajosa para ambas as partes: não só porque assim se fornecia sangue da melhor qualidade aos deuses, mas também porque dessa forma se exaltavam esses ótimos guerreiros, esses aristocratas, que com seu desprezo pela vida adquiriam uma grandeza incomparável. O resultado é, portanto, a antítese de uma soma zero. Todos ganham, na guerra marcada pela honra.

Com isso, mal falamos do primeiro valor que diferencia o homem do animal – e que distingue Odisseu: a inteligência. (Por sinal, de todos os chefes aqueus que cercam Tróia, Ulisses é o que menos se destaca pela honra – como se esta não bastasse para a vitória; como se a inteligência fosse inimiga da honra; como se na inteligência houvesse algo de utilitário, de instrumental; como se a Ilíada marcasse uma mudança de eras, de tempos; como se ela nos insinuasse que estão caducando os tempos arcaicos, dos heróis, da honra, e começando os tempos da astúcia, da métis, da esperteza; como se essa obra tão antiga, tão primeira na história literária, a seu modo pranteasse uma antiguidade que se esvai e constatasse uma modernidade – instrumental, eficaz, prezando mais os fins do que os meios, mais o êxito do que a glória – que se instaura; como se a Ilíada assim fosse uma evocação do belo passado, e a Odisséia mostrasse o duro parto dessa antiga modernidade do primeiro grande esperto da tradição grega, uma espécie de Caim helênico, porque vive entre os homens e abre mão da pureza, ou de Jacó aqueu, porque sabe as leis do sucesso futuro, e a elas sacrifica o belo agir).

Mal falamos, dizia, da inteligência; e isso porque ela hoje é considerada quase como óbvia: define-se o ser humano como zoon logikon, desde que os gregos deixam de ser arcaicos, como homo sapiens, para a ciência moderna. Odisseu substituiu, em nosso mundo, Agamêmnon, Aquiles. Basta ver que ele é mais referido, na filosofia do século XX, do que seus parceiros de guerra. Nosso tempo entende com dificuldade o que foi a honra. Essa dificuldade se evidencia se lemos hoje, por exemplo, a passagem d’O Príncipe, em que Maquiavel condena Agátocles ao compará-lo com César Bórgia. O primeiro conquistou o poder na Sicília, mas – como, ao chacinar inimigos convidados a um encontro supostamente pacífico, cometeu um ato ignóbil – diz o autor que não merece constar entre os homens dotados de virtù. César Bórgia, ao contrário, embora para instaurar a paz na Romagna tenha usado de irrestrita violência, merece-o. A diferença entre ambos, diz Maquiavel, é que ao primeiro faltou honra, ao segundo, não. Ora, é quase incompreensível, para o leitor atual, que a honra possa conviver com a crueldade: mal discernimos o uso da crueza pelos dois personagens citados. Por toda a parte, foi desaparecendo de nosso universo mental essa honra, que era guerreira: o que sobrevive, com seu nome, é convertido em honra íntima, em honestidade, em virtude cristã ou burguesa – ou seja, na negação da velha honra de cheiro pagão e de base aristocrática. Talvez por isso, em nossos dias, haja sentido em Walter Benjamin comentar Odisseu, e em restar pouco lugar aos outros chefes aqueus; talvez, por isso, o homem da astúcia prevaleça sobre o da fama imorredoura.

Porque a inteligência odisséia não é uma qualquer. É a astúcia. Essa está estreitamente ligada ao mundo prático. Não é contemplativa. Só faz sentido num quadro de competição. Não há astuto sem matuto. Não é casual que nas histórias de esperteza, que cobrem o saber popular de talvez todas as sociedades – que por ser popular geralmente se tece antes da modernidade, em tempos nos quais a honra externa vale, ainda, mais – contracenem um astuto e um rústico1. Demos em nossa análise do Canto IX maior ênfase à glória, talvez porque hoje lhe é atribuída menor importância, num tempo que se envergonha de confessar sua vaidade, talvez porque ela é, no mundo de Homero, o melhor emblema da busca pela dignidade humana. Pode ser que a astúcia seja, então, um magnífico instrumento, um meio fantástico pelo qual opera o homem homérico – mas a glória é o fim que ele almeja. Por isso o marido de Penélope é estranho, ele que é mestre dos meios mas mau de fins, bom na eficiência mas ruim de valores. Quando se critica nosso tempo em nome de valores esquecidos, muitas vezes se entende que sacrificamos, aos meios, os fins: que cedemos, à busca do dinheiro, da eficácia, do sucesso, aquilo que lhes conferia sentido, a saber, a dignidade, a ética, o respeito. Odisseu, nesse universo grego de homens que querem ser dignos, ainda que a um modo para nós estranho, faz as vezes de uma modernidade intrusa.

***

Em muitas sociedades, talvez na maior parte delas, se procura a honra, o renome. Falta dizer, porém, que ela não é apenas algo posto à nossa frente, algo dado, que se toma ou perde. Ela se produz. Ou seja, a honra não é questão de distribuição e circulação: é questão de produção.

Honra se ganha – e se perde. Comentadores dizem que ela é quase material: parece uma coisa. Estranho valor o da honra, que tem densidade ontológica. Quando um homem decide desonrar outro, ele subtrai-lhe uma posse. Arranca-lhe parte de si, por exemplo, como o hímen de sua filha ou irmã, a fé de sua mulher. Daí um certo caráter quase tosco, por vezes, das sociedades de honra – o que até pode soar paradoxal, mas apenas porque nos acostumamos a ter, da honra, a imagem das honrarias, das festas do século XIX, da seda farfalhando. Pois, na verdadeira sociedade de honra, não há matizes. Tudo depende do que se dá a ver. Intenções, explicações de pouco valem. Não adianta eu dizer que minha intenção foi uma, se a imagem deixada por meu ato se mostrou outra. E mesmo nos filmes que evocam a honra décimo-nônica, isso se vê, como quando, em meio a modas e modos, aflora o preconceito mais desabrido: um homem, por exemplo, que humilha a esposa somente porque ela, sem malícia, expôs a reputação. Esse, o primarismo da honra.

Mas, que a honra era primária, isso sabe quem a estudou; vamos a algo mais interessante, menos notado: a honra é um produto, assim como o gado ou o café. Existe uma economia produtiva da honra. Há maneiras de aumentar sua quantidade, como as há de perdê-la. Isso se resume na idéia de que dispomos, no mundo, de um quantum fixo de honra; ela pode expandir-se – pela guerra, o duelo e outros meios – ou, pela mesma razão, reduzir-se. Também essa expansão da honra é conhecida dos estudiosos; o que desconheço são estudos realçando assim que a honra é um produto, que há uma economia da honra, melhor ainda, um sistema produtivo organizado à sua volta. É o que vemos nas Guerras Floridas ou, mais perto de nós, no duelo privado, que sobreviveu ao Antigo Regime para constituir, até a I Guerra Mundial, um refúgio importante para os modos que se queriam aristocráticos.

Ora, o que é então a Guerra de Tróia, senão um esplêndido recurso de produção de honra? Está-se, por vezes, a um passo de negá-la – como quando o cadáver é humilhado; mas sempre se volta ao mundo honrado. Mesmo o que para nós é intolerável, como o sacrifício de Ifigênia às vésperas e como condição para a expedição a Tróia, se enquadra nesse universo sangrento, masculino, eventualmente cruel que é o da honra. E nesse sentido a Odisséia funciona como uma espécie de contrapeso à Ilíada. No cerco à cidade inimiga, os homens cobriram-se, em ambos os campos, de valor, como quase três mil anos depois os protagonistas das guerras do vale central do México; mas, na quase interminável volta a Ítaca, como nas guerras de Cortez com os astecas, nada disso. Aqui o enfrentamento não se dá entre varões, mas entre varões e aqueles seres que negam, quer a virilidade, quer o humano: mulheres sedutoras, feiticeiras, monstros, ciclopes, sereias. Ali, o combate se dava entre homens que, mesmo os não gregos, compartilhavam as características do humano, isto é, da cultura helênica, a começar pelos mesmos deuses e valores; aqui, o desafio se dá nos limites - externos ou internos – da condição humana. Por isso, o canibalismo. Por isso, a morte desonrosa.

E com isso a própria astúcia muda de figura. Ela deixa de ser o modo de vencer um inimigo também humano, um par, quase um igual. Ela deixa de estar no final da história, como o último recurso, que permite o desempate numa guerra que se foi mostrando interminável. Os homens de valor empatam a guerra, enquanto se cobrem de cada vez mais honra; é preciso que o esperto, isto é, o menos valioso dentre os valorosos, tome a liderança estratégica, para que cheguem a um fim os males da guerra – males esses que só o são para um espírito vulgar, plebeu, hoje diríamos burguês, que se incomoda com tantas mortes, tanta ausência de mulher, tanto sangue, tanto saque, desgraças, talvez, mas que para os nobres constituem o sal da terra. Terminar a guerra, no fundo, para quê? Um autêntico nobre, um homem do agon, que Nietzsche poderia elogiar, defenderia uma guerra perpétua.

Mas, aqui – na Odisséia –, a astúcia torna-se o modo de triunfar sobre ameaças mais radicais, aquelas que poriam em xeque a própria ordem, quase podemos dizer, o cosmos mesmo. É por isso que cintila, nesse segundo poema, um quê de horror. Na Ilíada não se tem, no fundo, nada a perder. Quem morrer triunfará: Aquiles sobressai como o grande herói, justamente porque morreu em frente às muralhas de Ílion. Na Odisséia, porém, com a vida se perde tudo. Não há renome que sobreviva às dentadas de Polifemo. E isso, talvez, porque ao se tornar repasto o ser humano não apenas morre, mas morre de maneira útil, aproveitável, reciclável. A honra supõe uma inutilidade derradeira, básica. Ela intensifica o que há de gratuito ou vão na morte. Mas a antropofagia, pelo menos tal como é vista por seus detratores, converte a morte do homem na preparação de um prato. O herói se desfaz em proteínas e calorias, para usarmos, de propósito, termos que um antigo não entenderia, mas que expressam bem essa banalização do que poderia ser, no outro poema, quase uma apoteose. O horror da morte, na Odisséia, está em ser ela tão banal.

E talvez fosse este o, digamos, castigo de Odisseu por ser ele quem foi. Era insuportável que a guerra de Tróia terminasse graças a ele. Os homens de apreço devendo sua vitória ao homem do (quase) desprezo! Não, ele precisa agora purgar sua culpa. Agamêmnon pode cumprir seu destino trágico, regressando diretamente a sua casa para ser morto pela mulher e o amante. Já o homem da sobrevivência e do sucesso, que prenuncia os valores maquiavélicos e os burgueses, necessita passar por uma longa viagem, em que prove sua humanidade. Tem de haver-se, ele que não tem por valores os da ínclita nobreza, com uma série de duplos, de seres perigosos – perigosos como ele! – que são quase humanos, contrafações ou contradições íntimas à humanidade: mulheres que enfeitiçam, sereias que afogam, gigantes que comem.

Fénelon, milhares de anos depois de Homero, ao escrever as Aventuras de Telêmaco, para educar o neto de Luis XIV, porá em cena o filho de Odisseu em busca do pai; após enfrentar um sem-número de inimigos, dirá o moço: Agora não temo mais nenhuma ameaça externa, só temo minhas paixões. A viagem se revelou interior. As aventuras são da alma. As desventuras e venturas têm, na sua objetivação, apenas um sentido alegórico. O que Telêmaco, para Fénelon, e Odisseu segundo nossa leitura procedem é a uma askesis que busca, no primeiro caso, a iniciação cristã, no segundo, o resgate de uma culpa básica, quase cósmica, que consistiu em sair do registro da honra para ingressar no da eficácia. Assim ele poderá, retornando a Ítaca, reagir com honra aos pretendentes – e faz parte dessa curiosa honra que seu filho termine por enforcar todas as criadas do paço que se deitaram com aqueles que disputavam, com o ausente Odisseu, a mão de Penélope.

No fundo, o que distingue o humano do desumano, Odisseu de Polifemo, pode ser às vezes difícil de discernir. A astúcia do homem que, de herói menor na guerra de Tróia, se converteu em protagonista da Odisséia, tem o seu quê de moderno, mas justamente naquilo que para nós não é digno de louvor. Quem estuda ou cita Odisseu hoje não o faz em chave elogiosa. É como se o nascimento odisseu do humano, entre a honra e a inteligência, se tivesse tornado mais que problemático, porque sua inteligência é a nossos olhos demasiado instrumental, e sua honra, duvidosa. Falamos dele como de um ancestral desses que é melhor não mencionar muito ou, pelo menos, evitar aprofundar, de medo do que vai sair. Com isso, traços de Polifemo acabaram respingando em sua imagem. Os dois foram inimigos, mas hoje não entendemos tão bem por quê, ou em quê. A chave de nossa incompreensão, a chave de nossa reticência em face de Odisseu, está porém mais na sua adesão à honra do que em seu uso da astúcia. A inteligência de Odisseu é moderna, mas sua inclemência não o é, e menos ainda que ele se possa honrar com essa crueza. Porque quem de nós, hoje, é capaz de compreender o que significava essa honra crua, a de Odisseu, a de César Bórgia? Ninguém, ou quase ninguém.


Sete Praias, outubro de 2002.





NOTA

1 1 Nenhum malandro carioca venderia bondes, para lembrarmos uma anedota da primeira metade do século passado, se não tivesse por clientes caipiras recém-chegados à capital federal. Sem a clientela do resto do Brasil – e, no caso, especialmente as Minas Gerais – não existiria o malandro como personagem do Rio de Janeiro de meados do século XX.